Por Neto Rodrigues
Uma geração inteira (quarenta anos), 14.600 longos dias, mais de 350 mil horas esperando por justiça, aguardando a oportunidade de limpar seu nome, resgatar sua honra, sua história e retornar ao seu posto de trabalho. Este foi o tempo e esta é a história de Sonia Castanheira, hoje com 71anos, uma perseguida política dos tempos da ditadura, uma vítima da crueldade militar que esperou uma vida inteira para lutar por justiça e assegurar que uma a injustiça histórica, fosse corrigida. E ela foi.
Em uma decisão inédita e histórica, a Justiça do Trabalho de Foz do Iguaçu concedeu a Sonia Castanheira o direito de ser reintegrada ao quadro de funcionários da Itaipu Binacional, após um longo processo que envolveu muito trabalho do advogado de defesa de Sonia, Daniel Godoy, um verdadeiro resgate histórico dos tempos da Ditadura Militar no Brasil. “Conseguimos provar que Sonia foi injustiçada, provamos que ela sempre foi uma pessoa de conduta exemplar. Provamos mais, provamos que Sonia foi vítima de uma perseguição política cruel dos coronéis da Ditadura Militar”, disse o advogado Daniel Godoy.
A decisão, proferida em 27 janeiro deste ano, pela juíza de direito Érica Yumi Okimura, é emblemática do ponto de vista jurídico e democrático, segundo Daniel Godoy, é a primeira vez na história do direito trabalhista que uma vítima de ditadura consegue o direito de ser reintegrada a seu posto de trabalho. Em seu despacho a juíza se manifesta: “Julgo procedentes em parte os pedidos de Sônia Lucia Castanheira em face de Itaipu Binacional para…: declarar a nulidade do rompimento de vínculo empregatício. Condenar a primeira ré a reintegrar a autora, na função de secretária bilíngue…”
A juíza ainda deu dez dias para que a sua decisão fosse cumprida, mas a Itaipu recorreu da decisão. Para Sonia Castanheira, que hoje passa por um tratamento de saúde em Assunção, no Paraguai, onde está internada desde a semana passada, esta primeira decisão é o resgate de uma vida interrompida. “Soube pelos documentos que vi somente depois da minha anistia. Não os conhecia. Serviram para armar um quebra cabeça pois eu desconhecia a razão de toda a violência que sofremos. Foi duro viver, foi duro assistir o medo dos demais de relacionar-se conosco , foi duro sentir-me como leprosa e discriminada, marginada por “quase” todos e finalmente foi duro armar a história total porque os delatores eram meus “amigos””, desabafou Sonia, que aguarda o julgamento do recurso para retomar seu posto em Itaipu. “Quero isso, quero voltar ao meu trabalho, de onde foi tirada, arrancada sem ao menos saber os motivos. Aliás, nem meus chefes e diretores sabiam”, desabafou Sonia.
Daniel Godoy, o advogado que defenda Sonia, está otimista quanto a manutenção da sentença da justiça de Foz. “Foi um trabalho longo, criterioso, de muita investigação. Ao longo de todo processo juntamos toda a documentação que prova que Sonia foi injustiçada, perseguida e demitida por motivos políticos. Mais que isso, por meio da oitiva de testemunhas que trabalharam com Sonia, provamos que ela era uma funcionária exemplar, dedicada, comprometida com seu trabalho e que jamais houve um motivo sequer para sua demissão”, avaliou Daniel.
Atualmente Sonia mora em Cidade de Leste, no Paraguai, e com o ânimo de uma jovem de 30 anos, a idade que tinha quando foi contratada, espera sua readmissão. “É só o que eu quero, voltar a trabalhar no lugar que tanto me orgulhei de fazer parte, que tanto amei trabalhar”, disse.
Perseguida política
Para entender o contexto da história de Sônia Castanheira, é preciso voltar ao ano de 1976, quando ainda jovem, foi contratada para ser tradutora na Itaipu Binacional. Naquela época, ingressar em uma grande aposta de duas nações era o sonho de qualquer jovem que iniciava a vida, e para Sonia não foi diferente. A brasileira, uma vez contratada, foi trabalhar como tradutora no lado paraguaio, embora em seu registro de trabalho, preenchido pelos militares, a função de contrato era a de escriturária.
Ao longo de um ano Sonia trabalhou com afinco, sendo considerada por colegas de trabalho, que foram testemunhas em seu processo contra a União e a Itaipu, como uma funcionária exemplar. Nada depunha contra a jovem brasileira, exceto a opinião dos militares brasileiros, paraguaios e argentinos, que a frente das cruéis e persecutórias ditaduras da América do Sul, taxaram Sonia como um risco a soberania sem a menor prova física ou testemunhal para tal atribuição.
E foi assim que Sonia se viu envolta em um ardiloso e cruel esquema de perseguição política que a colocou no Radar do Sistema Nacional de Informação, o temido SNI do Exército Brasileiro, e esteve na mira de agentes da Operação Condor, que conectava informações entre as ditaduras civis/militares na América do Sul.
Demitida no ano de 1977, sob a acusação de ter estreitas ligações com grupos terroristas e subversivos, Sonia viu o sonho de seguir uma carreira sólida na Itaipu Binacional se implodida pelas ditaduras sul-americanas. Quem assinou sua demissão foi o então presidente da Itaipu Binacional, General Costa Cavalcanti, que por documento comunicou a necessidade do desligamento da tradutora, do quadro de funcionários, por ser considerada um risco a segurança da Usina e, por consequência, ao país. Uma infiltrada, como definiu o General Figueiredo, militar que anos mais tarde seria o último presidente do Brasil indicado de forma indireta ao poder.
Acusação de terrorismo
Com a assinatura da lei da Anistia e Desmemoria Brasileira, em 2012, finalmente os brasileiros perseguidos pela ditadura puderam ter acesso aos documentos sigilosos de órgãos de investigação, perseguição e repressão do Exército Brasileiro, tal como o Sistema Nacional de Informação (SNI). Este acesso proporcionou o resgate do passado obscuro a qual cada vítima guardava fatos e abusos apenas na memória.
Na abertura desta “caixa preta”, Sonia finalmente pode saber os detalhes de sua demissão e, o mais assustador, ter a noção da verdadeira teoria da conspiração a que foi envolvida.
As relações sociais de seu marido, o argentino naturalizado paraguaio, Dario Anibal Galindo, levaram agentes da Operação Condor (que sustentava aparatos de investigação e repressão a ando das ditaduras sul-americanas), a investiga-lo intensamente. Segundo os militares, Dario era contrabandista de armas e tinha envolvimento com grupos terroristas brasileiros. Embora as citações “contrabando de armas” e envolvimentos com “grupos terroristas” não oferecesse provas materiais, apenas registros de palavras de militares, Dario, que também era funcionário da Itaipu, foi demitido da Usina, e, logo em seguida, Sonia foi posta na vala comum do SNI e banida do quadro de funcionários pelo mesmo motivo.
Em carta de demissão datada de 20 de maio de 1977, o General Figueiredo, comunica que “informo que, face as conclusões dos dados biográficos (de Dario Anibal Galindo e Sonia Lucia Castanheira), procedidos pela Assessoria de Segurança desta Entidade, com relação aos antecedentes dos nominados, foram os mesmos demitidos de seus cargos em 17 de novembro de 1976 e 15 de fevereiro de 1977”.
Operação Condor
Tratada como criminosa, Sonia que era dedicada e sempre pontual no seu trabalho, foi alvo de monitoramento de agências de informações militares que faziam parte da cadeia de informações da Operação Condor, a aliança militar das ditaduras do Chile, Brasil, Argentina, Paraguai, Bolivia e Uruguai na década de 70. Em um dos relatórios reportados ao General Figueiredo, informações registradas no documento 215/16/ac/77 da Agência Central do Serviço Nacional de Informação, alertavam para o risco de “infiltração comunista” diante da presença de Sonia Castanheira, visto que ela havia sido detida e interrogada no estado de São Paulo, por participar de passeata estudantil, dez anos antes, em 1966, quando ainda era estudante universitária. Para o exército, prova suficiente para concluir em seu dossiê, que Sonia era um risco para a segurança nacional trabalhando na Itaipu Binacional.
A troca de informações entre os serviços de inteligência das ditaduras sul-americanas davam o marido de Sonia, Dario Anibal, como um perigoso terrorista que contrabandeava armas e era foragido da justiça brasileira. Porém, no Paraguai, Dario chegou a ser detido e interrogado pela polícia federal daquele país, sendo liberado em seguida. O que evidencia que as supostas ligações com terrorismo e contrabando de armas não se confirmaram.
Por fim, a própria Itaipu, na figura do General Figueiredo, decide por demitir Sonia por suspeitas de envolvimento do marido com atividades subversivas, grupos tidos como terroristas e outros crimes que as ditaduras queriam atribuir ao casal. Sonia, por sua vez, foi condenada moralmente pelos militares por ter em sua ficha “criminal” a detenção por participar de uma passeata de estudantes na cidade de São Paulo, fato mais que suficiente para bani-la por justa causa do quadro de funcionários da Itaipu.
E assim, em fevereiro de 1977, a história de Sonia Lúcia Castanheira, na época com 30 anos, mudava radicalmente e ficava marcada. À época, talvez ela não imaginasse, mas seria quarenta anos mais tarde que ela teria a chance de ver a justiça ser feita em defesa da sua honra e de seus direitos fundamentais como cidadã brasileira.
A memória de uma perseguida
Do quarto do Hospital, em Assunção, capita do Paraguai, onde aguardava um procedimento cirúrgico, Sonia contou sua história.
Entrei na Universidade de São Paulo em 1965.À minha geração correspondeu estar ou não de acordo com a Ditadura vigente. E, como é natural em uma juventude idealista estávamos contra. Se eu tivesse entrado em 1972, 3, 4 ou 5, não teria tido os problemas que tive e que corresponderam apenas aos da minha faixa etária, ou próximos a ela. Em 1966 fui morar no CRUSP (Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo), que um ano depois seria considerado como o centro do movimento estudantil brasileiro e, segundo os jornais da época, o foco da agitação estudantil. Acredito que apenas 2 ou 3% dos alunos de minha época poderiam ser favoráveis a um governo ditatorial. Entretanto, passavam dissimulados, ante a imensa maioria contrária a ela. Em 1966 comecei a namorar um paraguaio que não participava de manifestações, mas era uma das cabeças pensantes do movimento estudantil. No CRUSP moravam todos os dirigentes estudantis, alunos ou não da USP. Era uma espécie de sede da UNE. Eu era apenas parte da massa. Em outubro de 1966 fui presa em uma passeata no Largo do Patriarca. (400 estudantes presos no DOPS.) No ano seguinte fui presa quando voltava para o CRUSP, depois de uma Assembleia, que se realizou na Faculdade de Filosofia da Rua Maria Antonia. Eu e todos passageiros do ônibus da empresa VANI (que era o único que nos transportava ao CRUSP.) Discussões e opiniões diferentes motivaram uma algazarra, que obrigou ao motorista a fechar as portas e conduzir-nos à Delegacia do Bairro de Pinheiros. Seria tonto da minha parte dizer que eu não estava metida na confusão, assim como outros estudantes, mas não estava mesmo. Eu era simples expectadora.
Passamos a noite na delegacia e jamais dissemos que nada tínhamos a ver com a balbúrdia, pelo sentimento de solidariedade que nos unia. Tudo o que fosse prejudicar a um estudante, comprometia a todos os demais, que imediatamente se uniam, esquecendo possíveis divergências.
Depois disso, a vida seguiu e eu, já formada, consegui um emprego como secretária executiva bilíngue na Itaipu Binacional. A partir daí, só fui tomar conhecimento dos fatos com a Lei da Anistia. O que tenho na memória dos fatos é o que soube pelos documentos que vi somente depois da minha anistia. Não os conhecia. Serviram para armar um quebra cabeça pois eu desconhecia a razão de toda a violência que sofremos. Não havia maneira de averiguar, já que no Brasil vivíamos em ditadura e no Paraguai uma pior. A maneira que os documentos vieram do Brasil ao Paraguai e foram do Paraguai ao Brasil deixa claro que estávamos ante a operação Condor. Nem meus chefes, diretores, conheciam os motivos. Eram documentos secretos e com eles tolheram vidas, trabalhos e jogaram com nossas famílias. Foi duro viver, foi duro assistir o medo dos demais de relacionar-se conosco, foi duro sentir-me como leprosa e discriminada, marginalizada por “quase” todos e, finalmente, foi duro absorver a história total porque os delatores eram meus “amigos” (???). Depois da anistia recebi uma cópia do meu dossiê. Estava em um aniversário quando ne entregaram o pacote. Me retirei e não parei até ler as quase 400 folhas. Vomitava e me indignava. Esse dia decidi que processaria a Itaipu, na qual trabalhei desde antes da abertura de seu primeiro escritório (requisitada pela Embaixada do Brasil ). É uma briga de David contra Golias, mas eu tinha essa dívida comigo mesma.
Sonia Lucia Castanheira, Assunção, 10 de fevereiro de 2017, via Messenger.
Na justiça a luta pela moral e pelo direito de voltar a trabalhar
Com o acesso aos documentos sobre sua perseguição e posterior Sonia deu início a uma série de processos, de indenizações, a direitos que lhe foram tirados, Sonia surpreendeu a todos quando fez um pedido específico a seu advogado, Daniel Godoy Junior, o de ser reintegrada ao quadro de funcionários da Itaipu. Ela também pediu que tivesse o direito de falar, o direito de frente a justiça, tivesse o direito de se manifestar e se fazer ser ouvida.
Em uma das mensagens trocadas com Godoy, Sonia disse : “Não quero que se termine esse processo sem que escutem a minha voz e algumas palavras minhas, nunca fui ouvida. Ao iniciar ação contra a Itaipu, pretendi que se faça justiça, pois paguei por um crime que não cometi. Fui condenada durante a ditadura brasileira e a feroz ditadura paraguaia, sem ter uma só prova contra mim. Fui uma das primeiras funcionárias da Itaipu Binacional. Amava a empresa e empreendimento gigantesco. Me sentia orgulhosa de pertencer ao seu quadro. Sempre fui dedicada, leal e correta”, desabafou.
Em outro trecho, Sonia faz um apelo a Daniel Godoy, revelando um pouco do sentimento que é viver com um sentimento de injustiça por quatro décadas. “Tenho quase 71 anos. Quero ter meus últimos anos sabendo que se fez o quer era justo. Quarenta anos passaram, mas eu não esqueci. Eu, minha família e meus filhos pagamos um preço muito alto por uma falsa acusação. Peço-lhe apenas isso. Justiça. Obrigada”, concluiu.
O advogado Daniel Godoy mergulhou então processo de Sonia e deu início a um embate jurídico que entra para a história não só do direito brasileiro, como para a história democrática do país. “Nós conseguimos as indenizações pretendidas, asseguramos que seus direitos fossem protegidos e conseguimos mostrar a justiça que Sonia merecia muito mais, que ela merecia a reintegração ao quadro de funcionários por uma questão de fato. Por direito dela que lhe foi tomado por uma injustiça cometida pelos coronéis da ditadura”, argumentou o advogado.
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