Ao mudar as regras para o leilão de hidrelétricas antigas, marcado para 6 de novembro, o governo federal sepultou a busca por uma energia mais barata. A licitação, antes alardeada como oportunidade para aliviar a pressão sobre os consumidores, virou uma chance para cobrir parte do buraco das contas públicas.
O objetivo do governo é receber R$ 17 bilhões das empresas que vencerem o leilão. A cobrança de outorga, inédita desde a remodelação do setor, fará com que as tarifas dessas usinas fiquem maiores do que seriam se a licitação fosse feita pelo sistema convencional.
INFOGRÁFICO: conheça as usinas que serão leiloadas no Paraná e no restante do país
Até poucos meses atrás, o governo projetava uma redução de 82% na tarifa média dessas hidrelétricas, que após o leilão baixaria de R$ 150 para algo próximo a R$ 27 por megawatt-hora (MWh). Com isso, a despesa dos brasileiros com a conta de luz poderia recuar R$ 6 bilhões, ou 5% do faturamento anual das distribuidoras. A explicação era de que, como essas usinas já tiveram seus investimentos recuperados, a tarifa não precisaria mais embutir a remuneração do capital.
Com a mudança de regra, a expectativa é de que os novos preços fiquem entre R$ 80 e R$ 90 por MWh. É menos que o custo médio de geração hídrica no país, estimado pelo Ministério de Minas e Energia em R$ 118 por MWh, mas bem mais que a ideia original do governo.
O conceito de “modicidade tarifária” era uma constante no discurso oficial desde o primeiro governo Lula, e foi levado ao extremo em 2012, quando a presidente Dilma Rousseff propôs a renovação antecipada de concessões como uma forma de derrubar o preço da energia em 20%. O pacote impôs prejuízos bilionários à Eletrobras, obrigada a aceitar uma remuneração irrisória pela produção de suas usinas, e deu origem a despesas que ainda vão chegar à fatura do consumidor.
No único leilão de hidrelétrica antiga realizado até agora, em março de 2014, havia prevalecido a tese da modicidade. Com isso, a tarifa da usina paulista de Três Irmãos, que pertencia à Cesp, caiu a R$ 17 por MWh. Patamar que, para muitos especialistas, mal remunera a operação e a manutenção da usina.
Na avaliação de Roberto Pereira D’Araújo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (Ilumina), o Planalto partiu de um extremo a outro. “A estratégia é atender problemas de curto prazo. Como está precisando de dinheiro, ele muda as regras”, diz.
“Agora existem usinas velhas do tipo A e usinas velhas do tipo B. Para o grupo da Eletrobras, que praticamente doa energia, o discurso era de que o povo já tinha pago. Agora, a história é outra”, completa D’Araújo.
LEIA MAIS: Acha que a conta está cara? Pode piorar: passivos podem encarecer tarifa
Otimismo
Embora admita que o consumidor do mercado regulado vá ser mais onerado, Thais Prandini, diretora-executiva da consultoria Thymos Energia, elogia a mudança na regra e as medidas anunciadas pelo governo para atrair investidores estrangeiros. “A concorrência vai aumentar. Antes, a chance de atrair interessados era pequena”, avalia.
Para a engenheira, a possibilidade de vender 30% da energia ao mercado livre a partir de 2017 também é positiva. Anteriormente, esse ambiente de contratação, restrito a grandes consumidores, não teve acesso à energia de hidrelétricas antigas.
UM LEILÃO DIFERENTE
A licitação de usinas antigas será diferente do modelo tradicional de concessões do setor elétrico. Veja por quê:
1 As 29 usinas que serão leiloadas em 6 de novembro são aquelas cujos antigos donos não aceitaram renovar as concessões em 2013.
2 Na renovação de outras concessões antigas, a tarifa imposta pelo governo federal ficou abaixo de R$ 30 por megawatt-hora (MWh) em muitos casos. O objetivo era reduzir a conta de luz em 20%.
3 A estatal Eletrobras foi obrigada a aderir e passou a ter prejuízos bilionários. Empresas comoCesp, Cemig e Copel não aceitaram as condições. Por isso algumas usinas suas vão a leilão.
4 Em 2014, o governo leiloou a primeira usina da leva das “não renovadas” – a de Três Irmãos, da Cesp. O consórcio que a arrematou está recebendo R$ 17 por MWh .
5 Para reforçar o caixa, o governo decidiu mudar as regras para o novo leilão.
6 Em cada lote, conquistará a concessão por 30 anos quem aceitar receber a menor tarifa para a energia entregue ao mercado regulado. Desta vez, o preço máximo é de R$ 126,50 por MWh.
7 Em 2016, 100% da energia negociada tem de ser entregue ao mercado regulado, onde estão os consumidores residenciais. A partir de 2017, 30% poderá ser vendida no mercado livre ou no mercado à vista, a preços negociados com grandes consumidores.
8 O que há de diferente no leilão é que a empresa vencedora pagará ao governo uma“bonificação de outorga” , algo inédito desde a remodelação do setor, em 2004.
9 65% da outorga terá de ser paga neste ano, na assinatura do contrato de concessão. Os 35% restantes têm de ser pagos em 180 dias.
10 Na prática, quem vai pagar essa bonificação são os consumidores, uma vez que ela será “diluída” na tarifa para o mercado regulado.
PREPARE O BOLSO
Acha que a conta de luz está cara? Pois pode piorar. Há um grande risco de o governo incluir esses passivos na tarifa:
R$ 34 bilhões
Empréstimos feitos pelo governo federal para socorrer distribuidoras. Serão diluídos nas contas dos consumidores por cinco anos a partir de 2016.
R$ 20 bilhões
É o custo do “déficit hídrico” (diferença entre a energia que as hidrelétricas geraram e a que elas deveriam ter produzido). Com a falta de chuva, elas tiveram de cobrir esse déficit comprando energia no mercado à vista.
R$ 17,9 bilhões
Indenização de sistemas de transmissão existentes antes de 2000, cuja concessão foi renovada antecipadamente em 2013. É um “efeito colateral” da medida provisória 579.
R$ 17 bilhões
Pagamento das “bonificações de outorga” no próximo leilão de hidrelétricas antigas.
R$ 11,5 bilhões
Custos de medidas adotadas para reforçar a oferta de energia e afastar racionamento em 2015 ( como a importação de energia de Argentina e Uruguai).
R$ 9,7 bilhões
Indenização por investimentos não amortizados nas hidrelétricas renovadas em 2013. É outro “esqueleto” da MP 579.
R$ 8,1 bilhões
Valores não pagos da Conta de Consumo de Combustíveis Fósseis (CCC), que banca o funcionamento de termelétricas em sistemas isolados do Norte.
R$ 6,1 bilhões
Custo da geração termelétrica que não está sendo coberto pelas bandeiras tarifárias.
R$ 1,6 bilhão
Custo anual do repasse de toda a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) aos consumidores “convencionais” de energia – as grandes indústrias conseguiram na Justiça se livrar do rateio dessa conta.
R$ 845 milhões
Tributos sobre as operações com “energia de reserva”, um mecanismo de contratação de fontes renováveis.
GAZETA DO POVO